Ao vender Sochi como sede dos Jogos olímpicos de inverno de 2014, o presidente russo Vladimir Putin prometeu uma experiência única: turistas e atletas poderiam esquiar nas montanhas, onde é muito frio, e mergulhar em piscinas abertas de hotéis, onde o clima é mais ameno, no mesmo dia. Sochi é famosa como estância de veraneio de milionários russos, incluindo Putin, que tem uma casa lá. Pelo fato de a cidade contar com um clima subtropical, a temperatura prevista para a olimpíada já estava no limite do aceitável para a prática de esportes na neve: no inverno, é esperada média de 6 graus na altura do Mar Negro, que banha o litoral (e só chega abaixo de zero grau na região montanhosa de Krasnaya Polyana).
O que atletas e turistas encontraram ao chegar a Sochi, porém, foi um cenário muito mais inusitado. O calor na altura do mar atinge 20 graus e, nas montanhas, 15 graus. Os Jogos de inverno precisariam de um ambiente que atendesse ao menos a uma de duas expectativas: temperatura mínima abaixo de zero e que a camada de neve no pico da montanha permanecesse com 30 centímetros de espessura. O calor intenso derreteu a neve nas pistas, forçou o cancelamento de treinos e prejudicou competições. Por trás dessa surpresa, um velho conhecido: o aquecimento global. Mudanças climáticas intensas que têm afetado o planeta no último século fizeram o clima ter um piripaque — um fenômeno que pode ser notado em anomalias frequentes nesta temporada de inverno no Hemisfério Norte e de verão, no Sul.
Um estudo publicado no mês passado por pesquisadores da Universidade de waterloo, no Canadá, indica que o aquecimento, que afeta principalmente áreas próximas ao Polo Norte, deve comprometer o futuro dos Jogos de inverno. Em quarenta anos, apenas dez das dezenove cidades que sediaram as olimpíadas desde 1924 — data em que ocorreu a primeira dessas competições, em Chamonix, na França — teriam condições de receber novas edições. A situação ficaria ainda mais alarmante em 2080, quando só seis das antigas cidades-sede seriam adequadas. Para chegar a essa previsão catastrófica, os cientistas canadenses levaram em conta prognósticos apresentados em relatórios divulgados nos últimos meses pelo Painel intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão da ONU, pelos quais a temperatura da Terra deve subir cerca de 4 graus até o fim deste século. Eles também analisaram a temperatura média dos invernos que ocorreram nas cidades-sede desde 1981. "As condições extremas que temos notado nos últimos meses são uma consequência esperada pelos que preveem o aquecimento do planeta", disse a VEJA o canadense Daniel Scott, um dos autores do estudo.
Em Sochi, que sedia os Jogos de inverno mais quentes da história, uma distorção na direção de um jato de vento vindo do oeste — mais um efeito das mudanças climáticas — manteve sobre a cidade uma massa de ar quente, que elevou a temperatura em mais de 10 graus. As consequências são desastrosas para as competições. A neve que cobria a pista de snowboard amoleceu e treinos de atletas tiveram de ser cancelados. Se a neve está amolecida, ela age como um freio, o que pode causar acidentes. Na terça-feira 11, essa condição provocou quedas na prova de velocidade de esqui cross-country. O calor era tanto que esquiadoras deixaram de lado as tradicionais malhas térmicas que as protegem de ventos gelados e optaram por competir de regatas. Por sorte, os russos se precaveram: caso a situação se agrave, há um estoque de 700 mil metros cúbicos de neve, guardado em depósitos nas montanhas.
As anomalias climáticas se espalham pelo planeta. A 11 500 quilômetros de distância de Sochi, a cidade de São Paulo quebra recordes de altas temperaturas neste verão. No último dia 7, os termômetros marcaram 36,4 graus, o máximo já visto para o mês de fevereiro desde que os registros tiveram início, em 1943. A metrópole também encarou a maior seca desde 1984, aliviada apenas pela chuva que começou a cair no fim da semana passada, e o nível de água no reservatório do Sistema Cantareira, o principal meio de abastecimento das casas paulistanas, apresenta seu menor nível da história.
Há risco de racionamento de água. Enquanto isso, chove copiosamente naInglaterra, que sofre com as piores enchentes a assolar o país em mais de dois séculos. Nos Estados Unidos, duas realidades coexistem. A Califórnia, na Costa Oeste, enfrenta sua pior seca desde 1895, e, se não chover nos próximos meses, pode vir a se tornar a mais grave em 500 anos. Na Costa Leste, uma nevasca atingiu 22 estados e afetou mais de 100 milhões de pessoas. "Não temos certeza das causas, sejam elas naturais ou criadas pelo homem, dessas mudanças climáticas", afirma Paulo Artaxo, geofísico da Universidade de São Paulo. "Mas é notável que eventos extremos, que sempre existiram, têm se tornado mais frequentes com o aquecimento do planeta." Desde 1950 a temperatura da Terra subiu 1,2 grau. Isso cria um descompasso nas correntes de ar que circulam pelo globo: lugares frios estão mais quentes; regiões quentes estão mais frias. Para os Jogos de Inverno, há uma certeza. Se a Rússia pretende se candidatar novamente a receber a competição nas próximas décadas, é preciso cogitar em realizá-la mais ao norte. Talvez, na Sibéria.
Fonte: Planeta Sustentável